Os cinco aspectos do bloqueio da coragem e um caminho para deixá-la fluir

Uma análise sólida da Coragem x Vergonha

Por Elizeu Borloti – Terapeuta Nexum (CRP 450/16) e professor na UFES

 

Você sabia que a palavra coragem vem da palavra em latim corat?cum, formada por cor- + -at?cum? Cor [dito com acento agudo no “o”: cór] é sinônimo de coração; e at?cum indica ação. Logo, literalmente, coragem é o mesmo que “ação [que vem] do coração”.

A palavra coração, por sua vez, também pode significar “centro”, “ponto que está bombando”, como quando se diz “o coração da cidade”. Isto está na base do “saber de cor”, que equivale à sabedoria genuína e verdadeira, que tem origem em algo que, incorporado, pulsa dentro, no centro de nós, como quando dizemos que um gesto amoroso nosso “foi de coração”.

Se você parar para analisar o sufixo -gem acoplado à palavra cor- na palavra coragem, se deparará com algo interessante: coragem reflete aos outros uma característica inerente dos sentimentos que vem do coração. Por isso admiramos aqueles que têm coragem. O sufixo -gem produz o efeito de indelimitação disso “que vem do coração”. Pronuncie a palavra coragem agora em sua mente e sinta que ela traz em si a mesma indelimitação contida em viagem, listagem, checagem... Isto indica que quando a coragem se manifesta em nossa vida, com certeza o nosso coração está rompendo limites.

Você já deve ter vivido isto e sabe que quando rompemos nossos limites nosso mundo ganha cor. É por isto que coragem também é o ato de dar cor a algo. Ficar corado é ficar com o rosto vermelho, lembra? Com exceção de sua ocorrência em algumas doenças de pele, como a rosácea ou a hiperidrose, o rubor facial é um fenômeno normal. Ele resulta da atividade simpática do nosso sistema nervoso autônomo, como o aumento das batidas do coração e a dilatação dos vasos sanguíneos, disparada em algumas situações da vida que ativam em nós alguns processos psicológicos que são significativos em nossa história.

Quase sempre, o ficar corado por motivos psicológicos é acompanhado dos sentimentos de vergonha e constrangimento.  Esses sentimentos sinalizam o momento da ocorrência da nossa coragem, como seu lado positivo. E quase sempre eles ocorrem em situações envolvendo outras pessoas. O renomado psicólogo americano B. F. Skinner, no seu último livro, Questões Recentes na Análise Comportamental, analisou os sentimentos de vergonha e constrangimento que surgem exatamente nessas situações. Vamos ver o que ele conclui.

A palavra vergonha veio do latim verecund?a, que originalmente significava primeira declinação ou ação de vergar (tornar-se curvo; arquear, dobrar, envergar, como o que fazemos com um vergalhão). E olha que interessante: vergonhas, no plural, já foi a palavra usada para designar os órgãos sexuais, como em “Não mostre as suas vergonhas!”. Skinner diz que a vergonha é um estado do nosso corpo diante da ameaça de punição de um comportamento nosso por uma pessoa próxima, tipo um amigo, parente ou colega de trabalho. Sim, até mesmo alguém próximo pode ser cruel conosco. Mas envergonhar-se nem sempre é negativo (já pensou se a maioria das pessoas não desenvolvesse vergonha por ser desonesta ou corrupta?). Segundo Skinner, para alguns de nós, na situação na qual sentimos vergonha, nem sempre é fácil saber com clareza qual é o comportamento nosso pelo qual poderemos ser ameaçados de receber (ou podemos já estar recebendo) punição por parte de outra pessoa. Este fato pode gerar uma personalidade tímida, um “repertório envergonhado” que gera sofrimento. Como isto vem de alguns episódios na história da pessoa, é preciso investigar se há trauma por abuso psicológico.

Vejamos a relação entre a vergonha e o constrangimento. A palavra constranger tem a sua raiz no latim stringere, que significa apertar. Assim, o constrangimento em ser ou falar sobre o que agrada ou desagrada você é como sentir-se apertado por não poder ser ou falar livremente sobre seus sentimentos. Isto sempre ocorre inicialmente na presença de outras pessoas. Com o tempo, para alguns de nós, até mesmo o pensamento sobre o que agrada ou desagrada pode gerar angústia, uma espécie de autocontransgimento. Curiosamente, em inglês, as palavras anger [raiva], anguish [angústia] e anxiety [ansiedade] têm a mesma raiz que indica “sufocado” por um aperto, o que confirma a análise de B. F. Skinner.

O importante a observar em tudo isto é que, tanto na vergonha quanto no constrangimento, a coragem está teimando em ocorrer, como que brotando de algo que pulsa em nós, resistindo a esse apertão que nos sufoca. Portanto, deixe a sua coragem fluir. Mantenha-a pulsando pelas razões apontadas anteriormente: é por algo que você está vivendo, que vem do seu coração, que expressa a sua verdade sábia, que é revelado de coração e está rompendo limites.

Isto ocorre com muita frequência em situações difíceis ou ruins, nas quais você é corajoso(a) e, por isso, sente vergonha ou constrangimento. Se você parar para analisar qual é o denominador comum dessas situações, você verá cinco aspectos:

  1. Há presença de pelo menos uma pessoa observando (vigiando) a sua coragem, tentando impedi-la de fluir.
  2. Essa pessoa está julgando ou criticando você no todo ou em uma ação, pensamento ou sentimento específico seu que demonstra a sua coragem.
  3. Essa pessoa se incomoda com uma ação, pensamento ou sentimento seu ou, simplesmente, com a sua presença, especialmente quando algo que você fez no passado ao ser corajoso(a) não tenha dado certo ou saído como planejado.
  4. Os seus sentimentos e pensamentos de que essa pessoa se incomoda com sua coragem são acompanhados de um medo de você ser ridicularizado(a) e da sensação de que se você a enfrentar pode piorar as coisas ou fazer parecer que não houve humildade de sua parte em reconhecer que sua coragem possa ter sido um atrevimento.
  5. A sua esquiva da coragem mantém essa pessoa funcionando como uma mordaça impeditiva de algo que você está vivendo, que vem do seu coração e quer ser expressão da sua verdade fora da sua zona de conforto.

Você deve estar afirmando que não é fácil ser corajoso(a) em situações assim. E você tem razão. E o fato de sabermos disto evoca compaixão e admiração pelos que são corajosos. Cada um sabe o amargo preço da fuga de si mesmo(a).

A dica principal de mudança no percurso em ser corajoso(a) é começar de modo gradual, tanto em relação ao conteúdo da sua coragem quanto em relação a quem você irá compartilhar esse seu conteúdo. Escolha quem o(a) acolherá em algum grau. Comece tomando consciência da situação em que a sua coragem quer surgir. Em seguida crie abertura para ela fluir na medida da sua capacidade, aquela que, em algum grau, é possível na situação. Isto deve ser feito com uma dose especial de generosidade para consigo mesmo(a): sobre o quanto desse conteúdo vale a pena compartilhar e para quem. Lembre-se do evangelista Mateus (7:6): "Não deem o que é sagrado aos cães, nem atirem suas pérolas aos porcos; caso contrário, estes as pisarão e, aqueles, voltando-se contra vocês, os despedaçarão”. Esta metáfora bíblica nos ensina que no treinamento da coragem há uma avaliação intuitiva de quem gosta de nós, do quanto ele(a) gosta de nós e do tipo de afeto envolvido nessa interação. Então, confie na sua intuição e compartilhe algo seu. O que será compartilhado será o que e o quanto você, e só você, quiser compartilhar.

Diante de algumas pessoas, é normal não compartilhar algumas das suas coisas. Entretanto, imagine que algumas das suas coisas estão mais no seu centro e outras, mais na sua periferia, como cetáfilos (“pétalas”) em uma cebola. Se for preciso, focalize sua coragem na sua periferia, lembrando que o importante é sentir algum grau de risco, uma sensação de sair da sua zona de conforto. Lembre-se que o grau de desconforto está sob seu controle: escute seus limites e sempre avance, de pouquinho a pouquinho, sendo generoso(a) para consigo mesmo(a). Avalie a sua segurança e, novamente, avance mais e mais, sempre respeitando o seu próprio ritmo. Finalmente, lembre-se sempre disto: o que quer que você expresse ou demonstre de modo verdadeiro é o que você está vivendo; é sua verdade (ou parte dela) revelada de coração e que, por isto, está rompendo limites. Viva!

 

* Este artigo foi escrito pelo autor e obteve ajuda de uma leitora anônima corajosa, uma paciente, a quem o autor é muito grato. Ela, que autoaplica esta estratégia de fluidez da coragem, avaliou a linguagem e a fluidez da leitura do artigo na função de leitora do grande público.

 

Referências

https://www.online-latin-dictionary.com/

Skinner, B. F. (1991). Questões recentes na análise comportamental. Campinas, SP: Papirus.

Tsai, M., Kohlenberg, R. J., Kanter, J. W., Kohlenberg, B., Follette, W. C., & Callaghan, G. M. (2011). Um guia para a psicoterapia analítica functional (FAP): consciência, coragem, amor e behaviorismo (F. Conte, & M. Z. Brandão). Santo André: ESETEc Editores Associados. (Obra publicada originalmente em 2009).  

Tsai, M., Callaghan, G. M., & Kohlenberg, R. J. (2013). The use of awareness, courage, therapeutic love, and behavioral interpretation in Functional Analytic Psychotherapy. Psychotherapy, 50 (3), 366-370.

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